terça-feira, 6 de abril de 2010

O Conto de Carolina - Parte III (Final)

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- Bem, mas você ainda não sabe o que vim fazer aqui, e imagino que esteja curiosa a esse respeito - afirmou o homem de óculos que estava sentado do outro lado da mesa da cozinha, o mesmo que havia chacinado a família de Carolina há quarenta anos atrás. Carolina engoliu em seco enquanto ele continuava seu discurso.
“O caso é que eu realmente queria ter matado a todos na época. Minha intenção era a de que não sobrasse ninguém para contar a história, mas eu cometi um erro, e esse erro acabou custando muito caro. Eu simplesmente não percebi que você estava naquele quarto. Estava pilhado demais eu acho.”
“Mas é como eu te disse, esse erro acabou me custando caro demais. Para começar, eu pensei muito em terminar meu serviço. Fiz inúmeros planos, mas eram todos muito falhos. A polícia estava sempre vigiando. Eles logo te colocaram em uma ótima família, isso por causa do grande apelo da mídia eu acho... mas enfim, você era um objetivo muito distante.”
“O tempo foi passando, a poeira foi baixando, e eu caí em mim... caí num buraco no qual não conseguia ver o fundo, não conseguia atingir o fundo, por mais que desejasse...”
Quando ele falou da parte do poço, Carolina conseguiu imaginar como ele dizia ter se sentido, porque ela mesma se sentira assim por muitos anos a fio. Mas ela não acreditava naquelas palavras. Elas eram frias e sem emoção, como se aqueles sentimentos a que ele se referia pertencessem a outra pessoa, já que ele nunca seria capaz de sentir algo assim. Mas ele seguiu com seu discurso, ignorando os olhos incrédulos e lacrimosos de Carol.
- Foi como um pesado e doloroso insight para mim. Comecei a ter sentimentos de culpa e medo, algo que nunca pensei que fosse me acontecer. Eu tinha pesadelos horríveis enquanto nem mesmo dormia, e, se dormia, eles eram dez vezes piores.
“O que eu quero dizer, o que vim aqui pra te dizer, é que eu me arrependi.”
Carolina não podia acreditar no que estava ouvindo. Aquilo não podia ser verdade! Ele era um assassino! Um mentiroso! Um animal perverso! Isso não estava acontecendo, era apenas um sonho. Não, era um pesadelo, uma brincadeira de mau gosto.
Seu corpo já não a obedecia mais, começava a tremer incontrolavelmente, enquanto por sua mente passavam xingamentos e blasfêmias que nunca fora capaz de proferir em voz alta. Lágrimas agora escorriam de seus olhos, e seu linguajar não passava de um balbuciar de palavras trêmulas.
- Carol, acalme-se, isso não ajuda em nada. Além disso, eu não espero que você me perdoe, eu apenas queria... ACALME-SE!
Aquilo era a gota d’água. Descontrolada, ela afastou-se dele, derrubando a cadeira no chão e batendo seu quadril contra a pia da cozinha, as mãos cerradas em punhos sobre o rosto encharcado, a faca em riste. Era incapaz de controlar os tremores quase convulsionantes.
- Seja racional, pelo amor de Deus! Seu marido e seus filhos estão chegando, e você não gostaria que eles vissem nada disso! Não gostaria que nada acontecesse a eles...
Essas últimas palavras trouxeram Carolina de volta à terra. A imagem de seu marido e de seus filhos veio instantaneamente à sua mente. Como ele ousava citá-los? Supor que algo poderia acontecer a eles? A tremedeira diminuiu, e ela lentamente abaixou as mãos ainda cerradas Seus olhos estavam arregalados, a boca aberta de pavor como se pronunciasse alguma vogal inaudível, o lábio superior arcado revelando terror e nojo ao mesmo tempo.
O homem que se autoentitulava Afonso também estava de pé, e movendo-se em sua direção. Já havia retirado a cadeira do caminho, acomodando-a gentilmente ao lado. Enquanto andava, seguia falando calma e pausadamente. Será que finalmente ele terminaria a tarefa iniciada há tantos anos atrás?
- Olha, eu não tenho como te explicar porque fiz aquilo. Eu tinha meus motivos, mas não quero me justificar, porque não há como justificar o injustificável. Agora eu só quero a justiça... custe o que custar.
Afonso ficou de frente para Carolina, há poucos centímetros de distancia, e a faca, apontada diretamente para seu abdome, quase o tocava.
- Você pode fazer três coisas agora, - disse ele - a primeira opção é me deixar sair daqui e continuar vivendo como se nada nunca tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse aparecido. Não acho que você fará isso. Eu não faria. Sua segunda opção é pegar este telefone que você carrega aí com você e ligar para a polícia, e é uma boa opção, eu diria. Se você fizer isso, eu serei preso, e você não será uma assassina. Mas eu espero que você escolha a terceira opção... e enfie esta faca diretamente aqui... - disse ele, apontando para seu próprio peito com o dedo indicador - sim, eu gostaria disso, seria mais fácil para mim; a solução dos meus problemas.
Ela o encarava olhos nos olhos, e não sabia de onde tirava forças para fazer isso. A faca firme em sua mão, a adrenalina em seu pico máximo. Cada centímetro do seu corpo desejava desferir aquele golpe, mas não conseguia. Não era uma assassina, afinal. Não tinha o que era preciso para se tornar uma, mas também não tinha condições emocionais ou físicas de abaixar aquela faca.
- Eu pensei que fosse ser difícil para você, e talvez eu tenha algo comigo que possa te ajudar a tomar a decisão certa. - enquanto ele falava, levou a mão esquerda às costas para pegar algo, e a imagem de uma faca desenhou-se na mente de Carol. O movimento deve ter sido muito rápido, pois, sem ela perceber o que ele havia feito, sentiu o impacto em sua barriga, um impacto por muito tempo desejado, algo que ela sempre quis saber como era. Sim, no fundo ela sempre desejou saber o que seus pais haviam sentido no momento de sua morte. Num reflexo instintivo, livre de qualquer pensamento, toda a tensão que sentia, toda a adrenalina que fervia em suas veias, toda a sua força e a sua alma canalizaram-se para sua mão direita, que desferiu um golpe fatal no flanco esquerdo de Afonso.
Com o susto, ela largou a faca, que estava enterrada por inteiro na barriga dele. Incrédulo, ele olhou da faca para os olhos de Carol, e o rosto dele espelhava um sentimento que ela não soube dizer o que era. Aos poucos voltando a si, ela escutou um som familiar, e tremeu. Procurou pelo ferimento que ele a infligira, mas não o encontrou. Em seu lugar, escondido no interior do bolso de seu avental, ainda tremendo e gritando, havia um celular. Não uma faca, mas um maldito celular!
Olhou novamente o homem sangrando, escorado à mesa, e percebeu que em sua mão direita havia uma fotografia antiga, o retrato de um casal que ela imediatamente reconheceu: eram seus pais, sorridentes, no preto e branco daquela foto desgastada.
Afonso caiu no chão, e ali, deitado, com a vida por um fio,disse:
- Obrigado Carol... obrigado minha irmã.
Seu rosto expressava um misto de gratidão e satisfação. Deve ter sido a última coisa que ele sentiu.

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